quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Nova Cantoria

Para espetáculo inédito, Grupo Vivarte investe na construção coletiva. Roteiros antigos serão retrabalhados e permanecem as rimas e as cores da literatura de cordel

GISELLE LUCENA

Os últimos meses do ano chegam ao Acre trazendo chuva: o rio se alarga, as folhas revigoram suas cores e o chão de terra vira barro por onde deslizam pequenos fios de água doce. Para entrar no Centro Cultural Vivarte, por exemplo, lá no bairro Vila Ivonete, por trás da folhagem poderosa, composta pelas Folhas Rainha e Cipó Jagube, não se pode ter medo da natureza, é preciso, apenas, respeito e adaptação: afastar um galho aqui, desviar de um outro ali e, na porta, tirar os sapatos – este último, nada mais que um costume local.

Centro Cultural também é casa e galpão de ensaios

E numa tarde qualquer, debaixo de chuva fina, num dia de meio de semana, o centro recebe a visita do secretário de cultura da cidade e também historiador, Marcos Vinícius Neves. Ele foi conversar sobre o roteiro da apresentação do grupo Vivarte em solenidade do município e acompanhar o ensaio final. Antes de sair, os artistas não deixam de perguntar sobre o Fundo de Cultura, e então, o presidente da Fundação Garibaldi Brasil se distancia do papel de historiador e os lembra do Fórum marcado para a noite daquele mesmo dia. Mas, infelizmente, os artistas do grupo Vivarte não confirmaram presença, pois naquela noite, além de aproveitar o máximo a presença do dramaturgo Edmilson Santini eles tinham outras visitas a receber: a atriz e contadora de histórias Karla Martins e o artista plástico Darcy Seles. E a dramaturgia continuava como mote para os encontros.

Espaço permanece aberto para visitas, práticas e debates sobre cultura, dramaturgia, história...

No Centro Cultural que também é casa e galpão de ensaios, a discussão é diária. O grupo que vive da/e para as artes é, também, um grupo de irmãos-amigos, seres humanos que também se cansam de si e destoam mentes e quereres: o espaço é pequeno, o tempo é curto, as idéias são muitas e os obstáculos da vivência cotidiana são desafiadores (ou tem ensaio do novo espetáculo ou tem oficina de Maracatu). E assim, os roteiros, as histórias, os enredos e as políticas culturais vão sendo construídas e vividas.

Teatro de Rua e da Floresta

O grupo experimental de teatro de rua Vivarte é agora de “teatro de rua e da floresta”, enfatizando a sua trajetória, seus trabalhos, roteiros e objetivos. “Encantoria”, o atual trabalho de construção do grupo, brinca com lendas, mitologias e personagens da floresta. O texto é do dramaturgo e cordelista pernambucano Edmilson Santini. Ele conheceu o grupo a partir de encontros da Rede Brasileira de Teatro de Rua, em 2009. Ainda no final do ano passado, Santini esteve em Rio Branco e teve a oportunidade de interagir melhor com o Vivarte. Foi quando resolveram retrabalhar o texto “O Casamento da Filha de Mapinguari”, uma produção feita à distância, por email. Já em 2010, Edmilson voltou ao Acre para participar do Arraial Cultural do Estado. Na ocasião, fortaleceu o trabalho com os artistas e voltou para casa com a tarefa de pensar e elaborar um novo texto.

Dramaturgo e cordelista Edmilson Santini escreveu texto de acordo com as experiências, dele e do Vivarte, com a cultura popular

Em dezembro deste ano, por meio de projeto financiado pelo Fundo Municipal de Cultura, o cordelista esteve novamente na capital acreana e, durante os 15 dias que passou na casa do grupo Vivarte, investiu na criação musical, leitura e discussão do roteiro de “Encantoria”. “Realizamos um encontro de entendimentos”, afirma. De acordo com a diretora Maria Rita, construir esta interpretação em parceria foi uma experiência única. “Estar com o autor do texto presente, acompanhando os ensaios, é um exercício completamente diferente”, conta a também atriz.

A sala que também é cozinha vira então o espaço para ensaios. No chão, cada integrante arranja o seu espaço, segura seu instrumento e o texto. Santini coordena os trabalhos e lembra Nelson Rodrigues e Gonzaguinha para inspirar a criação do grupo. Segundo ele, a experiência em Rio Branco foi inédita em sua carreira. “Foi a primeira vez que vivi esse acompanhamento e construção em parceria com um grupo, num lugar que é, na verdade, uma casa-oficina”, diz. “É importante que isso aconteça e que seja em cordel, porque o Brasil deve muito a esta literatura”, completa.

Animais da floresta sempre estão presentes nas histórias do grupo

Durante o ensaio, Magno Oliveira, um dos integrantes, é interrompido por uma criança do entorno que vem pedir o coador de café emprestado. É que as portas estão sempre abertas, e o ir e vir do fazer cultural na comunidade é rotineiro. A vivência foi tão múltipla, que Santini volta para a sua casa, agora no Rio de Janeiro, com a tarefa de construir um novo texto: As Cachimbeiras, mas esse é um roteiro para um futuro mais distante...

ENCANTORIA – “O texto foi construído com base nas histórias das nossas andanças e na experiência dele com a cultura popular”, explica Maria Rita. O “Encantoria” é uma viagem na história do país por meio da cultura popular: um grupo de brincantes vai atravessar a noite da floresta e recebe uma visita inesperada e passa a viver uma realidade mágica. Várias histórias surgem e os brincantes viram personagens: onça, uirapuru, índia, caipora... “Tudo nessa história conta com a mitologia da floresta”, garante Santini, autor do texto.

Outros Olhares - “Karla Martins achou o roteiro complexo, mas elogiou o texto e o arranjo musical”, orgulha-se Rita. “Este novo espetáculo é um grande desafio para nós, por isso, precisamos nos debruçar muito para que fique bom”, conta. Segundo a diretora, o grupo planeja chamar outras pessoas da área para assistir aos ensaios e levar outros olhares à construção. Ela reconhece o valor da interação entre os artistas para este processo. “É muito importante contar com a experiência de quem atuou durante muito tempo com teatro de rua. Observar e conhecer os trabalhos e a atuação de Karla Martins e Ivan de Castela, por exemplo, é fazer escola. Eles são grandes referências”, diz. “Propomos fazer um teatro experimental de rua e de floresta, temos que fazer internamente depois ir pra rua”, completa.

Prêmios, idéias e projetos

Neste ano, o grupo foi um dos contemplados com o Prêmio Matias de Cultura Popular, com um projeto de ampliação do galpão de ensaios da casa que, segundo a diretora, “está sempre cheia”. Nesse sentido, Maria Rita avalia de forma positiva a atuação do grupo durante o ano de 2010. “Foi um ano de o Vivarte mostrar que está aos poucos achando o seu caminho, sua linguagem etc.” No próximo dia 30, a casa vai receber o grupo Majericão, de Porto Alegre. “Estamos planejando uma viagem a uma comunidade ribeirinha”, revela Rita.

Seis artistas compõem o elenco do novo espetáculo


Além da finalização e circulação do novo espetáculo, também está nos planos do Vivarte, a compra de equipamentos para realização de oficinas e ensaios do espetáculo “Manuela e o Boto”, que será remontado. “Os ensaios serão abertos e acontecerão nas praças, juntamente com as oficinas de teatro de rua e maracatu”, explica a diretor. Outro espetáculo que ainda está em cartaz é “O Casamento da Filha de Mapinguari”. O grupo dá continuidade à turnê de circulação que o levou para várias escolas públicas da cidade e zona rural, como o CERB e a Escola da Floresta, com patrocínio da Caixa Econômica Federal.

Oficinas de Percussão – Um dos projetos oferecidos pelo centro são as atividades das oficinas de percussão, ministrada por Lua Azevedo. O projeto, realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura e patrocinado pela Uninorte, possibilitou a formação do grupo “Nação Arco-Íris”, com 15 de crianças, entre quatro e 16 anos. Os ensaios acontecem duas vezes na semana e englobam dos ritmos de maracatu, coco, ciranda, entre outros.

A Casa de Cultura Vivarte está localizada na Rua Tapajós, 508, Bairro Vila Ivonete. O telefone para contato é: 9957-9413 ou 9957-9421.

*Matéria publicada originalmente no Jornal Página 20